domingo, 18 de setembro de 2011
Um copo de agua
Eu mastigava com culpa cinco daquelas bolinhas de amendoim. Não era culpa, era ansiedade. Não, era tédio. Minhas amigas conversavam longamente sobre algo que não me interessava nem por um segundo. As chatices do marido, as chatices do trabalho, as chatices do trânsito. Minha vida não é chata. Desde muito novinha decidi que minha vida não seria chata. Eu inventaria um trabalho, uma casa, um dia, um modo, um jeito. E inventei. As festas na Carol sempre tinham comidas incríveis mas, naquele dia, eram só bebidas. Eu não bebo. Quer dizer, agora, de vez em quando, comecei a beber só porque entendi quando me falavam que sem álcool é tudo muito pior. Então passei a beber pouco. Uma taça de vinho? Mas naquele dia eu não podia beber porque não tinha comido e também porque não estava a fim. Eu estava a fim de ir embora. Voltar pra minha vida que não era chata mas ficava chata quando percebia que eu tinha uma vida dentre todas aquelas vidas que se faziam perceber. Olhei pra porta. Ela abriu e você chegou. Eu não te via há 3 meses e alguns dias. Foi então que o narrador do meu cérebro pigarreou e mudou o tom. Eu me narro tudo desde que me tenho por cérebro. Como se o tempo todo eu me contasse e contasse o mundo. Para ver se eu existo e se o mundo existe. Para ver se eu me suporto e se suporto o mundo e se o mundo me suporta. É insuportável, mas o tempo todo minha cabeça narra tudo. Minuciosamente, detalhadamente, dolorosamente. O tempo todo eu cavoco o segundo, o pó, a pele, o que se diz, o que se parece. Tentando narrar o mais profundo do profundo do que eu poderia narrar. Só pra responder o mais profundo do profundo do que eu poderia perguntar. Então o narrador começou dizendo assim "e então ele entrou por aquela porta". Você entrou por aquela porta. Eu apertei o braço da Fernanda: "é ele! Ai, meu Deus, é ele". Quem, Tati? Ele. Mas qual dos "eles"? Você tem tantos "eles", Tati. O último. Você era o último homem que eu tinha amado e, portanto, o "ele" da vez. Com seu cabelo alto, largo, rococó. Eu amo seu cabelo. Amo os cachos mais brancos que parecem ornamentos rococós para suas orelhas. Os puxa-sacos te abraçam. Eu percebo quem gosta de você e quem só te abraça porque um dia pode precisar de emprego. Alguns te abraçam gostando de você. E então eu fico feliz, porque eu gosto que gostem de você. Porque você é o tio da Lia, a bebezinha que pensa muito antes de rir pra qualquer bobagem. Você é o cara que, quando foi embora, me deixou sentindo uma dor bem enorme, mas eu gosto de você, você não fez por mal. Seu mal nunca foi por mal. Então, eu gosto que gostem de você. E o narrador me narra seus tênis sempre tão publicitários. Seus pés gordinhos e pequenos e tão perfeitos pra carinhos. E narra sua roupa de chefe descolado. E narra o segundo em que você me percebe na festa e cochicha no ouvido do seu amigo alto. E narra todas as infinitas vezes em que você passou por trás de mim, esperando que eu me virasse e concordasse com seu "oi" cordial. Preferindo que eu não me virasse, assim você podia não sentir essas coisas complicadas todas que sentimos juntos. Então, cansada de te narrar, chamei firme seu nome, com um sorriso maduro. Mordendo a língua que tremia batendo no céu da boca. Minha língua, quando te vê, quer logo te dizer coisas lindas e assustadoras. Então é uma luta prendê-la no céu, deixando na terra apenas meu cordial "oi" que você queria sem querer. Então fomos pegar água. Brindamos com a água. Você com sua mania de conversar quase dentro da minha cara. Eu vesga de te ver tão perto. Seu charme míope e inseguro. O menino inseguro que conversa colado na minha retina. Que insegurança é essa? Eu não te pergunto nada, apenas desejo tanto você que sorrio como se não me importasse com sua existência. Mas você resolve se explicar mesmo assim. Porque "seus olhos estão sempre me perguntando algo", você diz. E você começa sua loucura que me faz gostar ainda mais de você. Empurra a palma contra o peito e diz "eu gosto assim, Tati, fechado, protegido, eu gosto". Então você olha para o meu copo d'água e diz: "eu sou só um copo d'água, mas você ficava me olhando e pensando nas bolhas e nos gelos e nos canudinhos e na transparência e se a água era isso ou aquilo. Água é só água, por que você complica a água, Tati?". Então apagaram a luz e eu quis me esconder dentro do seu paletozinho de publicitário descolado e ouvir suas batidas descompassadas e embaladas pelo seu cheiro de alma boa. Mas você pegou na minha mão e continuou dizendo que uma mão, muitas vezes, é apenas uma mão. Mas que eu insistia em enxergar os buracos entre os dedos, os anéis que separavam os dedos, a dor da separação dos dedos, a gota da bebida gelada entre os dedos. E que você não poderia suportar isso. A maneira como eu te olhava. Vendo mais, inventando mais, complicando mais. E eu quis te dizer que tudo bem, eu seria uma menina simples. Eu mataria meu narrador, minhas possibilidades, meus mundos, minhas invenções. Só de ver seus cachos mais grisalhos e rococós ornando seus medos e superficialidades eu desejei não ser mais eu pra ser qualquer coisa que pudesse ser sua. Mas enchi meu peito surrado e murcho de coragem e te disse que, infelizmente, onde você era apenas um copo d' água eu era a tempestade.
Beijinhos da
Priscilla Estrela
às
12:10
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no XCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Esse Texto é de
Tati Bernardi
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário