Páginas

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Lembrança de um velho caminhão de mudanças

A vida fica surda sem você, porque o volume do mundo abaixa para ouvir meu grito interno. O mundo fica passando como um filme Super Oito na parede, as pessoas estão felizes demais, mas parece que faz tempo demais e sentido nenhum. Sem você sinto essa felicidade sem som, como se, por maior que fosse um sentimento, ele já nascesse com defeito. Eu sei que as ruas vão continuar com seus lixos, seus cinzas e suas possibilidades de destino. Eu sei que a poeira vai continuar dançando em volta do meu lustre enquanto eu tento me concentrar em duas ou três frases de um livro qualquer. Eu sei que eu posso muitas coisas sem você, e eu sei que, se eu tomar um banho quente e comprar uma roupa nova, talvez eu possa querer uma coisa que seja, só uma, sem você. Nada muda no mundo quando você não caminha ao meu lado, as pessoas quase não percebem que falta metade do meu corpo e que eu não posso ser muito simpática porque toda a minha energia está concentrada para eu não tombar. Os cachorros cheiram outros mijos, as pessoas estranhas fazem exercícios apertando as mãos levantadas para cima, alguns homens de terno insistem em usar óculos de surfistas como se fossem o super-homem que deixa aparecer um pedaço do S no peito. Ninguém deixa de espreguiçar só porque você não está aqui, ninguém deixa de molhar a torrada no café e de falar com voz idiota enquanto boceja. E eu odeio o mundo por isso, eu acho o mundo muito medíocre, eu tenho pena de todas essas pessoas que não sabem o que é encaixar o rosto no vão das suas costas e querer ser embalsamado ali por mil anos. Amor de verdade não acaba, é o que dizem, mas eu tenho medo. Eu tenho medo de quantos mijos, bocejos, cinzas e óculos de surfistas eu ainda vou ver sem você, eu tenho medo dos meus pedaços espalhados pelo mundo, eu tenho medo do vento passar enquanto eu estou míope, e eu ficar míope pra sempre. Eu tenho medo de tudo isso apagar e o vento levar suas cinzas, desse fogo todo ser de palha, como dizem. Da dor que se dissipa a cada respirada mais funda e cheia de coragem de ser só. Eu tenho medo da força absurda que eu sinto sem você, de como eu tenho muito mais certeza de mim sem você, de como eu posso ser até mais feliz sem você. Pra não pensar na falta, eu me encho de coisas por aí. Me encho de amigos, bares, charmes, possibilidades, livros, músicas, descobertas solitárias e momentos introspectivos andando ao Sol. E todo esse resto de coisas deixa ao pouco de ser resto, e passa a ser minha vida, e passa a enterrar você de grão em grão, sujando seus dentes e olhos e nada eu posso com a pá que está na minha mão. O vento está mais forte do que o vidro que eu fiz com os meus próprios grãos para me guardar para você. Ele está esmurrando a porta, escapando pelas frestas e eu gosto da brisa fina na minha testa aliviando o meu tormento. Eu já quase quero ser varrida por ele, como se sentir tudo isso fosse uma sujeira. Eu já quase quero ficar surda com o zumbido do vento, e calar a boca do desgraçado que mora na minha cabeça. Mas lembrar de você ainda tem o poder de congelar a natureza, de estancar a fresta aberta, de me fazer preferir o demônio quente na testa. Lembrar de você e de como é bom percorrer cada detalhe de tudo o que é seu ainda é melhor do que ser só minha ou me dissipar por aí, para sentir a leveza de querer um pouco de tudo e não muito de uma coisa só. O resto das coisas continua encapado por um plástico vagabundo, pedindo que eu espere mais um pouco para rasgar tudo e voltar. Minha vida ficou velha quando te conheci e todo o esforço que eu faço para não morrer a cada segundo longe de você, é a lembrança de um velho caminhão de mudanças cheio de quinquilharias, sem rumo e perdido

Nenhum comentário:

Postar um comentário