Tem sempre aquela pessoa que vai te falar: mas você tem as duas pernas, garota! Tem também as variações das duas pernas: os pais vivos, pelo menos dois paus na conta bancária, dois olhos perfeitos, dois ouvidos sem defeitos, essas coisas. No Brasil não tem terremotos. Pelo menos não em São Paulo. Pelo menos não em Perdizes. Tem buracos que engolem pessoas perto da Ed. Abril e tem aviões que matam duas centenas de pessoas. Mas eu não tive nenhum conhecido, amigo ou parente que tenha morrido em nenhum desses acidentes. Se você me vir por aí, buscando um pão quente ali na padoca da esquina ou comprando uma pacotinho de absorvente na farmácia do outro lado da rua, certamente pensaria: lá vai uma garota com as duas pernas, os dois olhos, os dois ouvidos, pelo menos uns dois paus na conta bancária, os pais vivos e nenhuma catástrofe significativa pesando em seus dois ombros perfeitos. Ou não pensaria nada porque nada em mim grita. Não tenho motivos para gritar. Lá vai mais uma garota de pé. Sem motivos óbvios ou convincentes para se contorcer de dor por aí. Ou sem nenhuma justificativa para se encolher, desistir, correr de quatro, se esconder em cantos, colar a testa na parede e querer que o mundo vire para o lado até as paredes virarem chãos. Eu sou só uma garota com a vida boa e, por isso, uma garota que segue a vida em pé. Seria até um pecado não dar valor a vida, não é mesmo? Com tanta gente pior por aí, não é mesmo? Seria um pecado não ser absolutamente feliz. E sorrir o tempo todo. E seguir a vida em pé. E hoje tava o maior sol. E sol me deixa triste. Porque o sol sempre quer dizer que a vida só está uma merda por culpa sua. Afinal, a parte dele, ele ta fazendo. Lá no céu, iluminando tudo, deixando tudo dourado. A culpa do seu dia estar um verdadeiro lixo é única e exclusivamente sua, porque o dia só quis ajudar. E a vida poderia estar realmente maravilhosa. Poderia se ao invés de estar nesse parque nojento com meninas barrigudas correndo e gritado “o peixe ta morrido, o peixe ta morrido” eu estivesse numa praia deserta tomando água de côco com um tipo inteligente, bom de cama e apaixonado. Mas praias desertas são como esse tipo inteligente, bom de cama e apaixonado. Logo enchem. Depois eu voltei do supermercado cheia de sacolas e umas das sacolas, muito pesada, fez um vergão no meu braço. E o que isso tem de triste? Sei lá, mas eu fiquei triste pra cacete. E o gordo do meu prédio que deixa a esteira completamente melada de suor me deprime demais, demais. E a tia com pernas de frango assado que divide a vaga do estacionamento comigo, e tem uma bosta de um Ka roxo sempre sem gasolina, me deprime mais ainda. E o prédio de trás, com seus pagodes dominicais? Me deprime tanto que eu gostaria que assassinato não desse cadeia. Eu gostaria de explodir todos eles. E depois dormir em paz. Mas eu não durmo em paz nunca, mesmo quando estou dormindo em paz. Eu acordo e penso “olha, estou dormindo em paz”. Isso definitivamente não é dormir em paz! E quando vou ver, lá estou eu mais uma vez, dobrando esquinas, cruzando ruas, fazendo curvas, dando setas, entrando em lugares, me despedindo, saindo do banho, dando a descarga, abrindo a geladeira, mudando o canal. Sempre de pé. Absolutamente triste e de pé. Eu e minha tristeza em pé. E então minha mãe me conta da sua dor ou doença da semana. E me faz uma lista de todas as pessoas que podem ser responsáveis por sua morte anunciada há mil anos. O chefe arrogante, a empregada burra, o vizinho barulhento, a telemarketing robótica, o moço da feira, a menina da unha. E eu quero matar todo mundo. Mas eu sei que já estive nessa lista vez ou outra. E então eu também quero me matar. E meu pai me fala o quanto acredita que a vida é uma grande merda. E que ele espera a hora que a vida acabe. E então minha mãe faz pipoca doce e meu pai parcela mais um aparato eletrônico em doze vezes. E eles já não sofrem mais e não culpam ninguém. E eu também já não sofro mais e nem me culpo. E tudo passa por um tempo e vamos sorrir, vamos ao cinema, vamos dormir depois do almoço do domingo. E daqui uns dias vamos caminhar por aí, com a nossa dor sem motivos. E, principalmente por isso, uma dor filha da puta. E vamos em frente. Eretos com nossa tristeza. Porque a alegria sempre carrega essa certeza de que a alegria é falsa. E a tristeza sempre volta, ainda mais em pé que a gente. Sobre a nossa cabeça. Tirando sarro da nossa ilusão. E o único jeito de ser mais malandro que a tristeza é sendo cínico. E lá vai a garota. Comprar pão quente com seu cinismo. Comprar absorvente com seu cinismo. Amar com seu cinismo. Porque só o cinismo vence a tristeza. Porque só o cinismo é mais triste do que a tristeza. E eu virei um muro alto feito de pedras cheias de pontas. Tudo isso só porque eu quero tanto um pouco de carinho que acabei ficando com medo de não ganhar. E coitada da moça da padaria e do moço da farmácia. Porque lá vai uma garota trator. Sempre de pé, carregando seu corpo sempre no chão. Sempre com pressa, pressa de acabar logo com tudo. Para poder deitar um pouco. Para poder dividir a tristeza com a gravidade. Para parar de fingir que tudo bem andar por aí carregando essa merda dessa tristeza. Sempre de pé. Afinal, seria um pecado não ser absolutamente feliz, com tanta gente pior por aí, não é mesmo? E todas as vezes que eu lembro dele dizendo para outra mulher: “eu quero muuuuito”. Eu não sei que porra ele queria muito. Talvez um dedo no cú. Não sei. Mas todas as vezes que eu lembro disso. Da humilhação que foi ouvir isso tão de perto e tão de propósito para doer. Eu não consigo simplesmente deixar morrer e nascer de novo. Porque todos os dias eu nasço de novo, com a esperança que a tristeza fique na outra vida. Mas a tristeza nasce comigo. E nós saímos para trabalhar, comprar pão ou sonhar em explodir o prédio do pagode. Sempre de pé. Somos dois animais de pé. Um ao lado do outro. Dentro do outro. Em cima do outro. Mas sempre juntos. Mesmo quando a alegria ocupa todos os espaços. Ainda assim a tristeza está lá, disfarçada de alegria. E a ausência da tristeza é apenas uma linha de trem. Anunciando que o trem existe, só saiu por um tempo. Daqui a pouco ele volta, maquinando, bufando e atropelando minha cabeça. E o trem corre deitado, mas eu sigo em pé. Afinal, seria um absurdo uma menina com uma vida tão boa não seguir assim. E nunca ninguém desceu do morro em bando para me matar. Mas eu sinto a morte me sufocando quando vou da Barra para a Zona Sul. E nunca ninguém botou uma arma na minha boca no farol da Henrique Schaumann. Mas eu sinto um gosto de pólvora misturado a lanche de restos mortos quando passo em frente ao Big X Picanha. E nunca ninguém me odiou ao ponto de me matar, mas eu me sinto morta todas as vezes que alguém deixa de me amar. E eu não estava naquele avião e nem naquele buraco. E nem tem terremotos na minha cidade. Mas nem por isso eu me sinto voando. Mas nem por isso eu deixo de sentir a terra em cima da minha cabeça. Tudo a minha volta treme e chacoalha mais que aquele brinquedo Samba no parquinho. De quando eu era criança e tinha medo de vomitar. E eu não comi nada estragado e nem estou ajoelhada no bidê. Eu nem tenho bidê. Mas sinto a eminência de uma ânsia podre e de joelhos o tempo todo. E definitivamente a minha vida não é uma merda. Mas a verdade é que eu sinto o cheiro da bosta mesmo assim. E eu continuo andando por aí, em pé com minha tristeza. Mas minha sombra está de lado, deitada no chão. Talvez porque assim esteja minha alma. Talvez porque isso seja viver, para quem é de verdade, para quem pensa um pouco, para quem sente um pouco, para quem lê jornal de manhã. Talvez apenas porque é meio dia.
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