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quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A historia completa de Ritinha

Ritinha fingiu a vida inteira mas nunca deixou de procurar a verdade. Sempre uma tosse de angústia na boca do peito. Sempre um motorzinho acelerado enjoado lá pro meio de algo que fica dentro. O olho ardia. A língua travava de vontade de mudar todo o discurso pronto e dizer apenas a verdade. Mas qual era a verdade? Então seguia fingindo. A vida inteira. Estudou um monte de coisa que se embaralhava na sua frente, mas fingia acreditar que aquilo a levaria para algum lugar. Um lugar com novos amigos e novos amores, talvez. Talvez essa fosse a verdade que purificaria tanta coisa sem sentido. Mas também não era isso porque, com esses amigos e amores, Ritinha seguia fingindo. De fingir estudar passou em tudo que fingiu se importar. De fingir curtir as festas e os amigos e aquilo tudo, Ritinha vivia em álbuns felizes e acabava feliz. De fingir amar, acabou chorando e doendo e escrevendo tantas coisas bonitas. Ritinha seguia fingindo o tempo todo. Às vezes, com medo de morrer soterrada por tanto teatro, Ritinha segurava firme no fundo dos olhos de alguém e dizia: a verdade é que, a verdade é que. E a pessoa, caso fosse assim como Ritinha, uma pessoa especial (porque quem procura essa verdade sempre é) só dizia: eu sei, eu sei. E era isso. Um momento especial, de verdade, sem a bola de pêlo presa na goela. Sem a tosse de angústia, tentando soltar algo pro ar entrar. Mas que algo? Mas que tosse? Então Ritinha ia ao psiquiatra e dizia não entender todas essas coisas como nuvens e casamentos e rodas fedorentas de caminhões bafando quente e infernal e abajures e cartões fidelidade e apostilas e tudo isso que acaba acontecendo porque acontece com todo mundo. Mas pra quem? Por quê? Qual é a verdade? Todos caminhando, todos com horários, todos de volta, cansados, o cérebro já bem gasto, agora podemos dormir, ufa, podemos dormir, pra quê? Pra amanhã mais e mais. E Ritinha ia. Como na hora do rush do metrô. Empurrada pela multidão sem verdade pra dentro de algo que leva pra algo. Pra onde? Eles precisam pagar as contas, eles precisam pagar o plano de saúde, diria sua mãe. Tá, e daí? Ter um problema sério nos ocupa de não ter o problema real. O problema real é que não dá pra calar a cabeça procurando a verdade. Que verdade? Quem inventou as nuvens? Porque as rodas de caminhões soltando fumaças quentes lembram tanto o inferno? E quem disse que a roda solta alguma coisa? Onde está a saída daqui? O tempo todo essa pergunta: onde está a saída daqui? Qual o caminho mais rápido para a minha cama, o silêncio, o escuro. Ritinha abraça as pernas, como criança, e se diz baixinho: não dá pra saber a verdade, não dá pra parar a cabeça, nada parece realmente o que é, hoje eu não disse o que realmente queria, aquelas pessoas não sentem aquilo que demonstram, eu pouco me importo com 70% dos preenchimentos do meu dia, mas é preciso chegar até amanhã. É preciso chegar. Ritinha se formou, trabalhou, namorou, viajou, casou, teve filhos, escolheu vestidos, escolheu pisos, escolheu tacos, escolheu flores, escolheu travesseiros, escolheu máquinas de lavar, escolheu o nome do neto, escolheu fazer a cirurgia, escolheu o sapato baixo, escolheu ver a novela ao invés do filme, escolheu dormir até mais tarde no dia que a empregada chegava mais cedo. Sem saber a verdade, Ritinha escolheu viver. No último segundo, até porque prometi que essa era a história completa de Ritinha, Ritinha descobriu algo que nunca mais poderá contar a ninguém. Só o que sabemos é que, em sua última sugestão do que seria a verdade, ela sorriu como sorrimos para um bebê quando ele se levanta bem compenetrado depois de desabar.

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